Cilto José Rosembach


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Ensaio- Afetividade

29/05/2014 17:57
JUVENTUDE E RELAÇÕES AFETIVAS
PEDAGOGIA DA TERNURA - PEDAGOGIA DA LIBERTAÇAO - PEDAGOGIA DO CUIDADO
REDESCOBRIR OS AFETOS
NA ERÓTICA DA TERRA, NA COMUNIDADE DE VIDA E NO CORPO DOS ENCONTROS
DESAFIOS ACOLHIDOS DIANTE DO TEMA DO CURSO DE VERÃO 2015
Machucaram o corpo da mãe terra, da irmã terra, da terra amante, da generosa terra sempre grávida.
Machucaram o corpo da comunidade humana, da afetividade humana, da humanidade amorosa e fecunda
Machucaram o corpo de um ser humano, violaram meninas e meninos, violaram indígenas, negros e negras,
violaram a dignidade dos pobres da terra.
• AS TREVAS INVADIRAM A TERRA
• AS TEMPESTADES TUMULTUARAM AS PULSAÇÕES
• AS QUEIMADAS DEVASTARAM AS HARMONIAS
• OS VENDAVAIS CALARAM AS CANÇÕES DE AMOR
• AS MÁQUINAS E SEUS VENENOS VIOLENTARAM A TERRA
• A INDIFERENÇA ROMPEU OS LAÇOS DA HUMANIDADE
• A EXPLORAÇÃO SUFOCOU OS ENCANTAMENTOS
A NATUREZA E AS SUBJETIVIDADES ESTÃO EM TORMENTO.
O QUE FAZER PARA RECOMPOR AS RELAÇÕES AFETIVAS?
Modelar com cumplicidade corações amorosos e de horizontes amplos.
Acolher a vida com grandeza de espírito e agir com eco-ternura na miudeza do cotidiano.
Abraçar as causas da integridade da criação e tocar a vida com pequenos gestos de fraternura.
Buscando as simbólicas de uma eco-ternura erótica:
PEDAGOGIA DA TERNURA
Educar na afetividade criativa com harmonia e sabedoria
SOMOS TERRA
CIRCULARIDADE ECO-ESPIRITUAL
Cantar, dançar e contar em leveza estética SOMOS AR
PEDAGOGIA DE DIREITOS
Cantar e dançar, contar e lutar na fluidez da ética SOMOS ÁGUA
ECO-ERÓTICA DA LIBERTAÇÃO
Brincar e circular em rebeldia as energias transformadoras
SOMOS FOGO
HÁ UM SABOR DE POESIA E AFETIVIDADE NA ARTE DA EDUCAÇÃO POPULAR
? Compartilhar criativamente práticas e sonhos pedagógicos como processo de autoria dialogal.
? Aprimorar o olhar e o ouvir nos processos educativos.
? Enfrentar com lucidez educativa a conflitividade social e relacional.
? Compreender a cidadania juvenil em confronto com processos de domesticação silenciadora.
? Qualificar o compromisso conjunto de educadores/as no crescimento da sensibilidade solidária, na eco-
ternura ambiental, na ação transformadora.
? REVISITAR: Criação em chave erótica (Gn.1 - Carlos Mesters) - Oséias e Gomer – Cântico dos Cânticos
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ARTE: PARA VIVER UMA GRANDE HISTÓRIA
HÁ MAIS! MUITO MAIS! Há mais sabor e beleza
naquilo que escapa dos pescadores do que nos peixes grandes e suas famas.
Há mais humanos em grandiosidade oculta do que celebridades vazias.
Há mais significados nas pequenas histórias do que nas célebres vitórias heróicas.
PAI NOSSO DE OLHOS MANSOS
Pai.... Mãe... de olhos mansos
Sei que estás, invisível em todas as coisas.
Que teu nome me seja doce
Torne-se a alegria do mundo.
Traze-nos as coisas boas que tens prazer:
o jardim, as fontes, as crianças,
o pão e o vinho,
os gestos ternos,
as mãos desarmadas,
os corpos abraçados.
Sei que desejas dar-me
O meu desejo mais fundo,
desejo que esqueci...
mas tu não esqueces nunca.
Realiza, pois, o teu desejo
Para que eu possa sorrir.
Que teu desejo se realize em todo o mundo
como ele pulsa em ti.
Concede-nos contentamento
nas alegrias de hoje:
o pão, a água, o sono.
Que sejamos livres da ansiedade.
Que nossos olhos sejam tão mansos
para com os outros
como os teus são para conosco.
Que não cobremos dívidas impagáveis
nem sejamos duros para perdoar.
Porque, se formos ferozes e vorazes
não poderemos acolher a tua bondade.
Livra-nos daquele que carrega
violência e morte
dentro de seus próprios olhos.
E dá-nos outra vez a dádiva
de teu olhar manso.
Poderemos assim já construir a PAZ.
Rubem Alves
ARTEVIDA ATREVIDA ARTIVISTAS
A ARTE INSUBMISSA
busca o contraponto
vai onde não é chamada
chega de surpresa e
balança o que parecia normal.
A ARTE REBELDE
faz dançar quem marchava
abre a boca dos sem voz
faz desabrochar quem murchava
torna ouvidor quem só falava
faz cantar quem chorava
A ARTE INQUIETADORA
junta os que estavam divididos
levanta a história dos negados
faz sonhar quem desesperou
desafia o que já está pronto
e inventa novos significados
A ARTE SUBVERSIVA
perscruta o esquecido
acha a pedra desprezada
não foge da terra seca
vê brilho onde as luzes se apagam
ESTA ARTE NÃO ESTÁ FORA
não fala sobre coisas
não dança para outros
não sobrepõe traços e tintas
não canta para enganar
não esculpe para imitar
ESTA ARTE JUNTA O POVO
fala junto e escuta
dança no movimento popular
desenha sonhos comuns
canta em mutirão
compõe as esculturas
das histórias em comunhão.
A EDUCAÇÃO POPULAR BROTA EM ARTE
na imensa pluralidade dos sentidos,
dos traços, das imagens,
das palavras,dos gestos.
A EDUCAÇÃO POPULAR ESTÁ EM ARTE
e nos liga com a vida, com a história, com a luta,
com os projetos humanizantes.
A EDUCAÇÃO POPULAR É VIDARTE
e abraça a solidariedade transformadora.
É esta arte habita entre nós.
salva
“Une tua mão às nossas mãos. Seremos irmãos, e o mundo não estará em poucas mãos, mas em todas as mãos”.
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1. OS AFETOS, AS CONVERSAS E A EDUCAÇÃO POPULAR
DESLOCAMENTO DA EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE E SENSIBILIDADE SOLIDÁRIAS
Estamos na humanidade tão aberta à beleza e ao
mesmo tempo coberta de vergonhosas atrocidades. A
história da humanidade está permeada de dominações,
escravidão, sujeições, negando o ser humano enquanto
pessoa livre e o povo enquanto protagonista de seu
destino.
Será a afetividade capaz de alguma efetividade
civilizacional? Com audácia, vamos produzindo valores
capazes de levar a humanidade a novos campos
floridos e à abundância das mesas. Produzir vida em
plenitude, vidas humanas-humanizantes, é desafio que
se coloca como fogo abrasador aos que se propõem a
conduzir projetos de esperança e libertação. Com as
vibrações do coração, teimosamente anunciam-se
valores que nos farão atravessar os limites da ordem-
desordem estabelecida, criando a sempre frágil e
provisória harmonia em busca da integridade da criação.
Há quem veja as necessárias transformações da
sociedade como um ato de força contra os poderes
opressores. E há razões de sobra para embarcar nas
lutas democráticas.
Há também quem não conceba a dicotomia entre as
ações no campo político e econômico, e as vivências da
poética fecunda do amor. Este é o caso de Paulo Freire
que balançou as muralhas da educação estática e
acendeu fogo novo e criativo. Ele captou uma revolução
em curso e propôs outros eixos articuladores do saber
em direção a uma mutação civilizatória.
Há os que se deslocam porque querem (os
viajantes, os turistas), os que se deslocam
porque crêem (os peregrinos, romeiros), os que
se deslocam porque precisam (os migrantes da
fome, os exilados), e há os que se deslocam
porque devem (os engajados - para usar uma
expressão cara aos dos anos 1960 -, os
comprometidos com o outro, com uma causa),
Paulo Freire teria pertencido às duas últimas
categorias.1 i(BRANDAO, 2008, p. 40).
O deslocamento nômade de Paulo Freire, lhe
possibilitou trazer o mundo todo para a educação em
1 BRANDAO, Carlos Rodrigues. Andarilhagem. In: STRECK,
Danilo R., REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime J. Dicionário
Paulo Freire. Belo Horizonte: Vozes, 2008.
chave amorosa e dialogal. Com uma pedagogia do
movimento, conversou com inúmeras tramas do
cotidiano, das culturas e da história. De suas vivências,
sonhos, mãos e da Pedagogia do Oprimido surgiram e
vão se desdobrando as Pedagogias do Conflito,
Pedagogias da Esperança, Pedagogias da Indignação,
Pedagogias do Diálogo, Pedagogias da Libertação,
Pedagogias dos Sonhos utópicos, Pedagogias do
Diálogo, Pedagogias de Direitos, Pedagogias da
Afetividade e da Ternura... e muito mais.
Com Paulo Freire, unindo as urgências da vida e a
opção ativa, assumimos a educação como ponto de
vivência e plataforma de lançamento para muitos
horizontes. É preciso abrir os olhos e direcioná-los para
esta gravidez e para os processos do nascimento de
outro mundo possível. Há que colocar a atenção para
dispositivos generosos de percepção da vida, para a
instauração de dinamismos criativos no campo das
subjetividades.
Não se trata de amansar e modelizar o rebanho, mas
de abolir o espírito de submissão e soprar ventos da
sensibilidade em vista da plenitude do existir livre,
criativo e solidário. A produção de ‘devires’ plurais
requer uma metodologia consistente na tessitura de
significativos processos de subjetivação.
Aqui há que fazer fluir conversações dialogais, captar
e instaurar redes de dispositivos, de práticas, de
institucionalidades que não apaguem o fogo das
subjetividades em seu permanente nascedouro criativo,
em sua inserção num campo social dinâmico e
disponível às transformações.
Desde a infância estamos permeados de palavras que
nos afetam. Os ouvidos das crianças estão muito
atentos às conversações dos jovens e adultos. Os
acontecimentos e as interpretações, o cotidiano e os
modos de dirigir a palavra entre adultos e destes com as
novas gerações vão modelando os modos de ser de
uma comunidade humana. No corpo e nas palavras, no
aconchego e no diálogo, constituem-se os devires. O
fluxo da afetividade de uma sociedade está entramado
com a convivência e as conversações que estão em
curso.
Salvador/2014
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2. DIREITO À TERNURA NO FOGO DAS PAIXÕES
DESLOCAMENTO DAS GUERRAS PARA OS TERRITÓRIOS DA AFETIVIDADE SOLIDÁRIA
O chamado novo milênio já vai em curso, sem
espaço para ufanismos vitoriosos ou para derrotismos
desesperados. Estamos na humanidade tão aberta à
beleza e ao mesmo tempo coberta de vergonhosas
atrocidades. A história da humanidade está permeada
de dominações, escravidão, sujeições, negando o ser
humano enquanto pessoa livre e enquanto uma
diversidade de povos capazes de decidir o rumo da
história e da criação. No Brasil também vivemos nosso
jeito de enfrentar tais descaminhos da humanidade.
Toca-nos viver este momento de produção de
humanidade sob ameaças múltiplas de aviltamento.
Produzir vida em plenitude, vidas humanas-
humanizantes, é desafio que se coloca como fogo
abrasador aos que se propõem conduzir projetos de
libertação a serviço das minorias e maiorias oprimidas e
empobrecidas. A comunhão-comunicação está em
frangalhos entre os humanos e com a natureza, por isso
faz-se urgente construir a sempre frágil e provisória
harmonia em busca da integridade da criação.
Teimosamente anunciam-se disposições de atravessar
os limites da ordem-desordem estabelecida.
As análises das conjunturas, dos acontecimentos, da
história, da economia, são importantes. Mas há que dar
uma atenção nova para uma microfísica do poder, para
uma micro-sociologia, para uma psicologia da
intimidade, para uma arqueogenealogia do saber, para
uma analítica da subjetividade, para um exame das
rotinas diárias.
Nas instâncias mais simples do viver familiar e
comunitário estão as raízes das dinâmicas sociais. Com
o influxo de muitos dispositivos amplos que passam
pelas instituições e pelos meios de comunicação, vão se
constituindo conversações decisivas na tessitura social.
Ali se instalam, de forma duradoura, modos
democráticos ou autoritários, pacíficos ou guerreiros,
ternos ou violentos, comunitários ou solitários,
relacionais ou despóticos, magnânimos ou mercantis.
Na intimidade, na invisibilidade social, vive-se
ambientes de ternura que compõem os sentimentos, a
elegância das palavras, o trato com a vida, os olhares,
os gestos afáveis, a generosidade com tudo o que
existe.
Na intimidade, na invisibilidade, vive-se também as
piores perversões, as fraturas da alma, as violações
sem marcas externas, as mortes lentas da poética vital.
A ausência da afetividade nos lares, na vizinhança, nos
espaços comunitários são bem mais constantes e
graves do que aquilo que os noticiários podem oferecer
aos olhares curiosos e falsamente revoltados dos
expectadores modelados pela truculência inoperante e
altissonante.
Quem busca uma sociedade pautada pela ética da
vida já viveu e aprendeu muitas formas de luta. A
demarcação dos direitos dos povos, das mulheres, das
minorias, da terra mãe, dos quilombolas, dos sem teto e
terra... exigiu uma história de intensa luta, sofrimento e
conquistas. Os direitos, que atravessam os campos
sociais, econômicos e políticos, se configuraram, tanto
quanto possível, em instrumentos jurídicos e
institucionais, que asseguram tais direitos.
Mas não basta que os direitos estejam estabelecidos
em documentos, Declarações, Convenções, Pactos, nos
macro discursos ordenadores dos Estados, menos
ainda na perversa ordem do Mercado.
O lugar de origem dos direitos está na subjetividade,
na intimidade dos valores, na inter-subjetividade, nas
relações familiares, nos encontros interpessoais. A
afetividade nas relações entre os humanos e com os
seres do planeta é dimensão fundante da ordem social e
política. Podemos dizer que a ética cidadã está fundada
numa estética cultural, na fraternura, na afetividade, na
eco-ternura, que se constituem na dinâmica familiar e
comunitária em cada território do planeta e da vida que
habitamos.
A afetividade é coisa de corpo e alma. Atravessa os
corações num diálogo que aprimora as palavras e os
gestos. Diálogo não é só uma questão das idéias, mas
das palavras que se tornam vibrações e aconchegam a
existência.
Como expressividade do amor, a afetividade
aproxima os humanos e os convoca aos jogos das
relações. Aqui a energia da vida transborda de emoção,
de sentimentos, de prazer, de gratuidade, de partilha. A
energia erótica desencadeia o impulso para diálogo,
para o encontro em liberdade mansa, verdadeira e
solidária.
Eros civilizatório, ainda aprisionado ao saber
intelectual ou às distorções figurativas da dominação,
pede passagem para aquecer a humanidade com um
fogo criativo. Este fogo da paixão traz o compromisso da
afetividade inaprisionável.
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Ternura é acontecimento resistente, uma reserva de
fecundidade humana que não foi tocado pelas
armadilhas das inversões que deturpam os valores mais
preciosos. Quantas distorções, mentiras e violações são
feitas em nome da palavra amor. O vazio das palavras
domesticadoras não consegue capturar a ternura pois
esta reclama o encontro de pele, de proximidade, de
toque, de abraço, de aconchego. “É muito gostoso, este
nosso aconchego, este nosso chamego, esta nossa
alegria de ser feliz”. O furor da dominação não inverte o
sentido da ternura pois ela nada deve nem à violência e
nem à sujeição. Assim, será necessário instituir o direito
à ternura como ponto de partida para outras
configurações sociais e políticas.
Os valores da conquista, do heroísmo vencedor, da
sujeição, da vingança, do sacrifício têm experimentação
milenar e invadem a sociedade e a intimidade,
pervertendo a política, a pedagógica e a erótica. O
cuidado, a ternura não são apenas atitudes
compensatórias, mas expressões de um paradigma que
vai permeando os territórios da alma, da política, da
cultura, milímetro a milímetro, casa a casa, comunidade
a comunidade, bairro a bairro. As veias abertas dos
povos receberão sangue novo da ternura e da
afetividade revolucionárias em liberdade solidária.
A lucidez da afetividade pode trazer novas luzes para
os novos territórios da cidadania comunitária que vamos
tecendo na mais pura eco-ternura erótica.
Salvador/2014
É POR AMOR À VIDA
Zé Vicente
É por amor!
Sim, é por amor à vida que cantamos
e tantas vezes choramos também.
É por amor à vida que estamos lutando
e vamos andando lentamente para
buscar a luz
e a liberdade das manhãs de sol!
É por amor!
Sim, é por amor à vida, evidentemente,
que encaramos de frente
essa imensa dor que se nos impõe
nesse reinado amargo do ódio
presente!
É por amor à vida
que estamos nas ruas,
nas praças, nas estradas
e gritamos palavras de ordem
de uma nova ordem!
Sim, é por amor
É por amor à vida que marchamos
nas madrugadas de lua nova
levando nos braços
a fúria das tempestades
prontos a resgatar
a terra que nos tomaram.
Vamos replantar
as flores e as sementes
Que há séculos estão em cio!
É por amor!
Sim, é por amor à vida
que profundamente doloridos
recolhemos em nossos braços
os que foram brutalmente feridos
e quando já não podemos
devolver-lhes a respiração
nós comungamos de seu sangue
e os fazemos ressuscitar
em milhares de vidas e sorrisos!
É por amor!
Sim, é por amor à vida
que escrevemos nas pedras
os poemas da esperança rebelde
que pichamos nos muros e nas
portas
as frases corajosas de um futuro
novo
que dançamos nas festas de sábado
no batuque do carnaval
de um povo livre!
É por amor que nos abraçamos
Que nos beijamos na esquina
e já não tememos
andar de braços dados
seguindo a bandeira da paz
e da ternura conseqüente!
É por amor!
Sim, é por amor à vida
que desesperadamente amamos!
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3. AMOR E ARTE: UMA ERÓTICA DESINSTALADORA
O amor vibra desde as entranhas ou será apenas um nome bonito para o consumo dos discursos vazios. Ouvir as
vibrações da vida do outro é contagiar-se por sua alegria e seu itinerário buscante.
O amor é atraído e atraente. Ele exerce irresistível sedução sobre a humanidade. Onde há amor, há força atrativa.
Onde há amor, há inquietação, deslocamento, busca. Por esse motivo, Eros é a possante energética da destinação
antropológica. (...) Venha a paixão erótica que impulsione o ser humano a criar nova terra e novo céu. Só a
humanidade apaixonada poderá concretizar a destinação antropológica. Paixão não é instinto cego ou desvairado.
Nem é irracionalidade. Paixão é a veemência do amor inteligente que encabeça nova fase evolutiva, destinada a
elaborar mundo igualitário e solidário, onde o Ser Humano seja, efetivamente, centro, fim e medida. Seja a humanidade
incendiada por paixão erótica que consiga suprimir o fosso das desigualdades, derrubar os ranchos da servidão e
fertilizar as colinas, onde manam a justiça e a paz.” (Arduini, Juvenal. Destinação Antropológica, São Paulo: Paulinas,
1989, p.266)
Ouçamos os sons do presente e dos projetos. Ouçamos os sons dos medos e das esperanças. Misturemos tudo e
transformemos num poema. Aí, em comunhão, podemos comer juntos os dons criativos, como sacramento da vida
terna e eterna.
Estamos, porém, invadidos pela mercantilização da vida que agride a dignidade, a erótica e sacralidade da
natureza e da humanidade. Há que contestar o uso e abuso da palavra amor, como tentativa de lhe roubar a
rebeldia. Encontramos por aí, o amor capturado, o amor domesticado, o amor narcísico ao idêntico, o amor de troca
que exige gratidão e cobra retorno previsível. E este anti-amor conturba e contamina os afetos. O amor não é esta
falsidade revestida de cenários midiáticos e cálculos de vantagens.
No contraponto da hegemonia dos cálculos de utilidade, aqui estamos nós compondo e percorrendo novos e
antigos caminhos da gratuidade relacional. A afetividade ética e esteticamente responsável, lida com os saberes e
as artes na temperatura da vida e tensiona as teias da sociedade para práticas transformadoras recusando a
captura do campo do amor pela sociedade do espetáculo, pela esperteza utilitária, pelo mau gosto dos abusos da
imagem e pela afirmação narcísica das vaidades pessoais. O amor que desencadeia afetos verdadeiros acontece
no risco da aventura e enfrenta as voltas e reviravoltas da barbárie.
A itinerância e a teimosia nos fazem buscar outros territórios da subjetividade, transitar por outras florestas da
plural diversidade, libertar o coração das capturas do imaginário, promover ações subversivas dos desejos e
inaugurar campos novos da existência social.
Os afetos clamam por espaço, reclamam por uma abertura do humano em face da mortífera injustiça instituída.
O ROSTO, A TERNURA E OS CAMINHOS
De onde vem a disposição de contrapor os afetos,
em sua fragilidade gratuita, aos ditames poderosos da
eficiência mercantil?
Vem do amor que se deixa comandar pelo rosto do
outro e que não se sustenta vitorioso nem na
experiência e nem nas teorias. O rosto do outro se
dispõe, em sua nudez, à violação e ao acolhimento.
Aqui está a prova de fogo do amor. Dostoievski diz que
“somos todos responsáveis por todos, e eu mais do
que todos” (os irmãos Karamazovi). Este desafio à
responsabilidade é a marca infinita do amor diante do
outro, que só desenha sua obra de arte em nós
quando descemos de nosso poder de poder, de nossa
soberania arrogante, de nossas torres de controle.
O amor, terno e rebelde, não tem a força do poder
que domina e domestica, mas tem a fecundidade
geradora de mundos novos. O sem-poder do amor
produz a vida que a força do poder não pode jamais
criar.
O amor abre caminhos, coordenando passos
construtivos, e dispersando passos destrutivos. O amor
vitaliza o pensar, o caminhar, a arte, o movimento, o
trabalho, os debates e embates, não aceita a
condenação e processos acusatórios, mas coloca-se
na produção da liberdade, da fraternidade, da justiça,
do aprimoramento pessoal e comunitário, da
solidariedade sem fronteiras. O amor nos encaminha
para a plenitude de nossas melhores aspirações.
Para esta bio-diversidade afetiva que somos, há que
escutar muito, superar intransigências, romper
intolerâncias, modular convicções. Mente e coração
precisam conversar melhor. Há que buscar uma
lucidez amorosa, especialmente quando os desacertos
da vida ameaçam desencadear tempestades. Para que
os apelos à sensibilidade afetiva não se transformem
apenas em amortecimentos ilusórios dos conflitos, mas
garantam uma permeabilidade fecunda, há que pensar
amorosamente.
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LUCIDEZ E ERÓTICA
Uma sociedade intolerante não se constitui apenas
porque o cérebro tornou-se inflexível nas idéias. A
intolerância invade os campos da afetividade e desafia
os limites do diálogo quando se pretende um esforço
apenas racional.
Em geral, entende-se diálogo como fenômeno
apenas intelectual. É o diálogo da palavra, do
conhecimento, da ciência. Mas esse diálogo é
restringente. Além do diálogo lógico, há o diálogo
erótico. O diálogo erótico manifesta-se no amor, nos
sentimentos, na amizade, na solidariedade, no
prazer, na sexualidade. O diálogo lógico raciocina,
fala, argumenta. O diálogo erótico é presença
amorosa, silêncio atento, encontro interpessoal.
Muitas discussões racionais e acusações irracionais
teriam soluções mais humanas e menos cruéis, com
a prática do diálogo erótico. O cruzamento dos
diálogos lógico e erótico provoca o pensamento
emocional e a afetividade racional, a ciência sensível
e a sexualidade sábia. Aí está perspectiva sedutora
que nos convida a cultivar a inteligência amorosa e o
amor inteligente. (Juvenal Arduini)
O amor tem incidência social, ecológica e política.
Nas tramas da afetividade tornam-se consistentes as
práticas históricas com seus contornos artísticos,
eróticos, pulsionais, prazerosos. A amorização dos
revolucionários desencadeia ternura em plena luta,
suscita tenacidade para arrancar com carinho das
cruzes os crucificados da opressão, para oferecer o
colo aos caídos e erguer em dignidade os anulados da
existência.
Sem amor pode-se conhecer o mundo, saber sobre
os mapas das instituições, do corpo, da alma ou das
ideologias, mas não se poderá criar novos tempos,
novos itinerários, novos contornos, novos rumos,
mundo novo.
Sem amor pode-se traçar as melhores técnicas da
escrita, mas não se poderá escrever uma nova história
humana.
Sem
amor
pode-se
treinar
professores
e
profissionais, mas não conseguirá uma pedagógica da
libertação autoral.
Sem
amor
pode-se
traçar
a
arte
mais
contemporânea, mas não se forjará um povo como
obra de arte.
Sem amor pode-se fazer a música mais perfeita, mas
não se ouvirá com encanto a canção do povo de todo
canto.
Sem amor poderá haver uma instituição perfeita,
mas serão abortadas a participação construtiva.
Quem ama olha em frente e busca conduzir o destino,
construir mundos novos, deixar muita gente plena de
alegria.
EROS E A LIBERDADE SOLIDÁRIA
O amor não é da ordem do olhar para aprisionar, mas é
do dinamismo da parceria para criar. Eros é princípio de
vida que não paralisa mas acontece na irrupção da
generosidade mobilizadora. O amor não é domesticável,
pois se rebela diante das servidões, vem abolir toda a
escravidão e não apenas amenizar as feridas e torná-las
suportáveis.
No Brasil colônia, os senhores usavam sexualmente as
escravas, mas evitavam afeiçoar-se a elas, com receio
de que o amor os levasse a emancipá-las da
escravidão. ‘O amor, de per si, repele a escravidão’ diz
o historiador José Oscar Beozzo. O amor ensina a ser
livre e a libertar os outros. (in Juvenal Arduini. Antropologia,
ousar reinventar a humanidade, São Paulo: Paulus,2002,
p.116).
O amor não se acanha, pois Eros é expressividade.
Assim o ser humano comparece inteiro na vida social, na
trajetória de sua família, nos caminhos de sua
comunidade. Com toda sua dimensão erótico-vital, com
toda sua paixão, com sua arte, o ser humano apresenta-
se ao mundo em vibrante liberdade solidária.
Para que a humanidade conheça outro tempo e viva
situações de ampla alegria com muitos lugares à mesa
comum, com o aconchego dos lares e dignidade do
trabalho, há que recolher as melhores idéias, mas
acionar o melhor do amor, o Eros indomesticável capaz
de direcionar o destino da comunidade para que todos e
todas ampliem seu campo de expressividade.
Assim, buscamos novas modulações da vida, dos
nossos programas de ação, das nossas iniciativas. E é
preciso pensá-las bem, para que sejam entendidas e
admiradas. Mas não basta. É preciso que sejam
amadas, já na sua elaboração e ainda mais na
travessia.
A aurora desse eros comunitário desencadeia o
fazer coletivo e amoroso que já está aí. O sol sai pelos
olhos e aquece os corações, e não apaga as estrelas,
que sabem brincar de esconder e revelar seu brilho. E
as flores abrem suas cores e formas, seu perfume e
beleza encantando corpo e alma com sua presença e
com a promessa das sementes e dos frutos.
O amor nos une neste momento para que nossas
mãos tomem a corda. É hora de retesar o arco da
nossa prática de educação popular. Com nossas mãos
na corda retesada, com o arco firme e flexível, com o
destino nos olhos do conhecimento e no horizonte da
ação, preparamo-nos para lançar a flecha do futuro
que desejamos em mutirão.
Salvador/2014
Texto inspirado em Enrique Dussel,
Hugo Assmann, Emanuel Mounier,
Juvenal Arduini e Emanuel Levinas
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4. SOMOS ARTE-EDUCADORAS DE UMA ECO-PEDAGOGIA DIALOGAL
O pensamento criativo vai inventando novas formas
de viver. Assim se quebram as fronteiras entre o saber,
a estética e a vida. Na comunidade humana vai se
preparando o terreno para brotar a sabedoria criativa.
Para isto é preciso uma Pedagogia própria. Não a
Pedagogia do Eco que faz as pessoas repetirem o que
outros falam. A Eco-Pedagogia é a Pedagogia do
Cuidado criativo. Não é a anti-pedagogia da repetição.
Há que criar projetos de Educação que valorizem sim,
a tradição, o saber coletivo, e também que disponham
as pessoas para a autoria solidária, para a criação em
comunidade.
Uma Pedagogia do Cuidado será de fundamental
importância em tempos de ameaças à vida no planeta.
ECOLOGIA COM ROSTO HUMANO
Em tudo os instáveis, provisórios e invencíveis
enlaces do Céu com a Terra, das vivências da beleza e
das causas sócio-históricas mais amplas. Em tudo o
Cuidado na teimosa arte do encontro.
Terra, Céu e Utopia se unem ao Cuidado para que a
vida vá se fazendo plena. Assim, a arte conversa com a
integridade da criação. Há uma convocação para os
novos tempos criativos
A Ecologia tem um registro ambiental que vai
ganhando terreno nos últimos anos. Um contorno
humano vai sendo exigido também pelas comunidades
camponesas, por quilombolas e indígenas: uma
ecologia com rosto humano. Há também um referencial
estético que mobiliza sensibilidades corporais, energias
mentais, gingados sociais, ressonâncias culturais,
harmonizações políticas e arranjos legais para que a
festa não seja a amesquinhada doação das migalhas,
mas irrompa com a abundância do pão e sacie a fome
de beleza.
Para
este
projeto,
a
humanidade
espera
ansiosamente pelos eco-artistas, arte-educadores,
amantes da terra, cuidadores das relações. E haja arte!
COM-VICEJANDO NA ALTERIDADE
Somos seres transitantes, imemorialmente carne
viva, encarnação, concretude relacional. Somos
habitados pelos outros. Assim, anterior à apropriação-
dominação que faz do outro uma coisa, um objeto, uma
mercadoria, está a arte do encontro a reclamar primazia.
Este acontecimento cultural do encontro com o outro é
fonte de tantas artes.
Ao outro não se lhe calará a voz. Trata-se do outro
que não está no interesse, que não está integrado no
Ser, mas que está fora. Fora, mas não excluído, nem
tão pouco incluído de forma assimilatória.
Trata-se do encontro com o deficiente numa
sociedade de atletas, com o escravo numa sociedade
livre para dominar, com a criança num mundo adulto,
com o estrangeiro numa sociedade de autoctonia
vitoriosa, com a mulher num paradigma patriarcal, com
a pessoa comum numa sociedade aristocrática, com o
trabalhador rural numa urbanização prestigiosa, com os
sem terra na primazia do latifúndio e agro-negócio, com
os empobrecidos na hegemonia do capital, com povos
comunitários em face da privatização máxima nos
Estados Modernos.
Quando a morte do outro ser humano, daquele que
não desperta interesse, passa a dizer respeito ao eu,
passa a questionar, passa a incomodar cumplicidades
por indiferença, faz ouvir seu grito, aí começa
consistente alteridade.
O Outro que clama, só se mantém Outro com sua
exterioridade ao sistema. Há que lutar pela dignidade do
outro, pela qualificação de seu projeto, sem assimilação
anulatória. “Ótimo que a mão ajude o vôo, mas que
jamais se atreva a tomar o lugar das asas”. (D.Helder
Câmara).
A arte que acompanha este programa civilizatório
plural, dialogal e inacabado, não será feita em bases
seguras e definitivas. Será um movimento de abertura,
sem
morada
permanente,
arriscando-se
por
descaminhos, colocando na existência social incômoda
os que não cabem nos padrões, ressoando as vozes
caladas, afligindo os confortados.
O artista terá demoradamente olhado, tocado, ouvido,
sentido a presença, o corpo, o saber, o rosto do outro,
para participar de sua revelação, de sua manifestação, e
de seu recuo fundamental para não ser anulado na
assimilação.
Quem já olhou, duradouramente, no fundo dos olhos
de um morador de rua, de uma criança no farol, de uma
mulher em conquista da terra, de um migrante, de um
filho da terra chamado indígena, de uma afro-
descendente em busca de seu quilombo-mãe, de tantos
mistérios escondidos, compreende o coração da arte, da
vida, da estética da existência. Quem já ouviu,
duradouramente, vozes humilhadas e altivas, sufocadas
e agressivas, aprisionadas e ativas, vozes dos
profundos gritos dos povos e da terra, pode em obra de
arte tornar-se e pode dar densidade às múltiplas formas
de se pronunciar artista. E há o toque, o afago, o
aconchego, o cheiro...
TEU OLHAR, TEU OLHAR MELHORA... MELHORA O MEU.
9
MANIFESTO DA AMANTE/AMADA, IRMÃ, MÃE TERRA
Somos todos iguais perante o Sol. Somos todas iguais perante a lua.
Somos todas iguais perante a vida. Somos todos iguais perante o universo.
Há de se cuidar das nascentes e da água que alimenta a
morada dos humanos.
Há de se pajear os peixes e os rios, os ninhos e as florestas.
‘Há que se cuidar do broto pra que a vida nos dê flor e fruto’
Há que aconchegar as sementes e os frutos, os vôos e os
nascimentos, os seres minúsculos e os oceanos.
Há de se tomar posse da energia que se oferta do sol e dos
ventos.
Se jogarmos pedra no vento, é capaz que ele olhe pra trás.
Se jogarmos tudo na mãe terra, é capaz que o coração dela se
entristeça.
Nada pode tornar-se lixo. Tudo há de ser reciclado, recomposto, reinventado.
Há de se plantar árvores longamente e proteger o ar para que seja apropriado para as borboletas e os
meninos.
Inspirado no Manifesto de Nhá Terra (Grupo Ponto de Partida e Meninos de Araçuaí)
A Natureza, toda sensual e fecunda, convida os/as artistas às pulsações do desejo criativo. Não há arte solitária,
ainda que seja feita no silêncio dos mistérios pessoais. Toda criação está povoada da comunidade de vida, da trama
social. Há sempre um convite para a mesa comum dos saberes e dos sabores, dos encantos e das vibrações que
abrem janelas para as obras de arte e para os/as artistas que se descobrem como seres em construção criativa.
Quem estava à margem se achega trazendo suas cores, seus gingados, seus sons, seus dons e entra na dança
pois sua história conta.
ILUMINADOS
Ivan Lins
O amor tem feito coisas
Que até mesmo
Deus duvida
Já curou desenganados
Já fechou tanta ferida
O amor junta os pedaços
Quando um coração
se quebra
Mesmo que seja de aço
Mesmo que seja de pedra
Fica tão cicatrizado
Que ninguém diz
que é colado
Foi assim que fez em mim
Foi assim que fez em nós
Esse amor iluminado
PACHAMAMA
Roberto Malvezzi (Gogó)
A terra é toda azul, planeta água
A terra é toda, toda, toda, toda grávida.
TODA BELEZA, DA PACHAMAMA
COM SUAS ÁGUAS, SOLOS E FERTILIDADE
COM SUAS CURVAS, RIOS, SENSUALIDADE
É O PARAÍSO DO SONHO FELICIDADE (2)
É tudo dom de Deus, é tudo a mão do Pai
Que fez nenê mamar e a mulher gestar
Que deu às fêmeas o instinto maternal
Criou o cio fecundo do mundo animal
E deu às plantas o seu ciclo natural (2)
É tudo criação, é tudo gestação
De um filho pra nascer, um ser que vai viver
A vida humana é de Deus supremo dom
A natureza é beleza é comunhão
A terra é casa de lugar de cada irmão (2)
O SEU OLHAR
Arnaldo Antunes
O seu olhar lá fora
O seu olhar no céu
O seu olhar demora
O seu olhar no meu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu
Onde a brasa mora
E devora o breu
Como a chuva molha
O que se escondeu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu
O seu olhar agora
O seu olhar nasceu
O seu olhar me olha
O seu olhar é seu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu
E já não seremos esta feiúra cheia de decorações artificiais da fama e com a perversa manutenção da lama
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5. FUNDAMENTOS ESQUECIDOS DO HUMANO
APRESENTAÇÃO
Salvador
Humberto Maturana e Verden-Zoller, na obra Amar e
Brincar, Fundamentos esquecidos do humano, tratam da
afetividade em chave civilizatória. De uma análise da
origem e crescimento das conversações de caráter
patriarcal, passam a uma proposição de retomada das
conversações matriciais que perduraram em misteriosos
e comunitários espaços de reserva vital. A infância e a
maternidade são lugares deste reservatório.
Contam os Guarani que o Criador, Nhanderu, fez os
humanos para a palavra, a canção e os afetos.
Ele, nosso Pai Primeiro-Último, era o Coração
Grande. Tomou, por isso, partes de sua própria
divindade para criar os humanos. Tomou o quê?
Tomou uma porção de linguagem, uma porção de
amor e uma canção. Todas essas coisas, Nhanderu
tinha dentro de si. Foi assim que Nhanderu conseguiu
criar um ser participante da fala, do amor e das
canções. Da sabedoria de sua própria divindade, deu-
lhes consciência da divindade. - ‘E como é que
devemos chamá-los? Nós os chamaremos excelsos
verdadeiros pais das palavras-alma, excelsas
verdadeiras mães das palavras-alma. Porque
também nós somos palavras-alma’.
Na comunidade indígena Guarani M'biá, a criança
nasce depois dos sonhos dos pais. Mas os sonhos não
são sobre o tempo cronológico e o destino social da
criança. Os sonhos são entradas tênues e envoltas em
névoas no mistério do Divino Primeiro-Último. Não se
penetra com clareza na eternidade do recado de
Nhanderu. A criança que vai nascer é uma Palavra. E
esta Palavra é um recado único de Nhanderu. No sonho
não se vê tudo. Quando muito se vê a região celeste de
onde virá a criança, e aí então a gravidez acontece. O
sonho engravida. Quando a criança nasce e vai
crescendo, os adultos ficam atentos para aprender.
Ficam os adultos abertos à nova Palavra que vai se
desenrolando. Não se diz: parece com o pai! parece
com a vó! Não. Esta palavra é original. Não se diz: fica
quieto, faça isso, seja aquilo... que vai ser quando
crescer? Se assim se proceder, não poderá emergir o
recado divino inédito.
As conversações na aldeia constituem um tipo de ser
humano avesso à agressão, aberto ao respeito, ouvinte
atento do mundo, consciente de seu valor e de sua
palavra, autor do destino coletivo.
O EMOCIONAR
Humberto Maturana
À medida que nos desenvolvemos como membros de
uma cultura, crescemos numa rede de conversações,
participando com os outros membros dela em uma
contínua transformação consensual, que nos submerge
numa maneira de viver que nos faz e nos parece
espontaneamente natural.
Em outras palavras, nossas mães nos ensinam sem
saber que o fazem, e aprendemos com elas, na
inocência de um coexistir não-refletido, o emocionar de
sua cultura; e o fazemos simplesmente convivendo. O
resultado é que, uma vez que crescemos como
membros de uma dada cultura, tudo nela nos resulta
adequado e evidente. Sem que percebamos, o fluir de
nosso emocionar (de nossos desejos, preferências,
aversões, aspirações, intenções, escolhas...) guia
nossas ações nas circunstâncias mutantes da vida. (...)
O EMOCIONAR PATRIARCAL
Nossa cultura atual tem as suas próprias fontes de
conflito, porque está fundamentada no fluir de um
emocionar contraditório que nos leva ao sofrimento ou à
reflexão. (...)
A criança vive a primeira fase de sua vida como uma
dança prazerosa, na estética da coexistência harmônica
própria da coerência sistêmica de um mundo que se
configura com base na cooperação e no entendimento.
A segunda fase de sua vida, em nossa cultura
patriarcal européia, é vivida pela criança que nela entra -
ou pelo adulto que ali já se encontra - como um contínuo
esforço pela apropriação e controle da conduta dos
outros, lutando sempre contra novos inimigos. Em
especial, homens e mulheres entram na contínua
negação recíproca de sua sensualidade e da
sensualidade e ternura da convivência. Os emocionares
que conduzem essas duas fases de nossa vida
patriarcal européia são tão contraditórios que se
obscurecem mutuamente.
Quando isso acontece, começamos a viver uma
contradição emocional, que procuramos superar por
meio do controle ou do autodomínio; ou transformando-
a em literatura, escrevendo utopias; ou aceitando-a
como uma oportunidade de refletir, que vivemos como
um processo que nos leva a gerar um novo sistema de
exigências dentro da mesma cultura patriarcal; ou a
abandonar o mundo, refugiando-nos na desesperança;
ou a de nos tornarmos neuróticos; ou viver uma vida
matrística na biologia do amor.
11
O EMOCIONAR MATRÍSTICO
Numa cultura matrística pré-patriarcal européia, a
primeira infância não pode ter sido muito diferente da
infância em nossa cultura atual. Com efeito, penso que
ela - como fundamento biológico do tornarmo-nos
humanos ao crescer na linguagem - não pode ser muito
diferente nas diversas culturas sem interferir no
processo normal de socialização da criança.
A emoção que estrutura a coexistência social é o
amor, ou seja, o domínio das ações que constituem o
outro como um legítimo outro em coexistência. E nós,
humanos, nos tornamos seres sociais desde nossa
primeira infância, na intimidade da coexistência social
com nossas mães.
De fato, é a maneira em que se vive a infância - e a
forma em que se passa da infância à vida adulta - na
relação com a vida adulta de cada cultura, que faz a
diferença nas infâncias das distintas culturas. Por tudo o
que sabemos das culturas matrísticas em diferentes
partes do mundo, podemos supor que as crianças da
cultura pré-patriarcal matrística européia chegavam à
vida adulta mergulhados no mesmo emocionar de sua
infância. Isto é, na aceitação mútua e no
compartiIhamento, na cooperação, na participação, no
auto-respeito e na dignidade, numa convivência social
que surge e se constitui no viver em respeito por si
mesmo e pelo outro.
No entanto, talvez se possa dizer algo mais. A vida
adulta da cultura matrística pré-patriarcal européia não
pode ter sido vivida como uma contínua luta pela
dominação e pelo poder, porque a vida não era centrada
no controle e na apropriação. (...)
Na cultura matrística pré-patriarcal européia, a vida
humana só pode ter sido vivida como parte de uma rede
de processos cuja harmonia não dependia exclusiva ou
primariamente de nenhum processo particular. Assim, o
pensamento humano talvez tenha sido naturalmente
sistêmico, lidando com um mundo em que nada existia
em si ou por si mesmo, no qual tudo era o que era em
suas conexões com tudo mais. As crianças
provavelmente cresceram e alcançaram a vida adulta
com ou sem ritos de iniciação, chegando a um mundo
mais complexo que o pertinente à sua infância, com
novas atividades e responsabilidades, à medida que seu
mundo se expandia. Mas sempre na participação feliz
de um mundo que estava totalmente presente em
qualquer aspecto de seu viver.
Além disso, os povos matrísticos europeus pré-
patriarcais
devem
ter
vivido
uma
vida
de
responsabilidade total, na consciência de pertença a um
mundo natural. A responsabilidade ocorre quando se
está consciente das consequencias das próprias ações
e quando se age aceitando-as. Isso inevitavelmente
acontece quando uma pessoa se reconhece como parte
intrínseca do mundo em que vive.
O pensamento patriarcal é essencialmente linear,
ocorre num contexto de apropriação e controle, e flui
orientado primariamente para a obtenção de algum
resultado particular porque não observa as interações
básicas da existência. Por isso, o pensamento patriarcal
é sistematicamente irresponsável. O pensamento
matrístico, ao contrário, ocorre num contexto de
consciência da interligação de toda a existência.
Portanto, não pode senão viver continuamente no
entendimento implícito de que todas as ações humanas
têm sempre consequências na totalidade da existência.
Por conseguinte, conforme a criança tornava-se adulta
na cultura matrística pré-patriarcal européia, ela deve ter
vivido em contínua expansão da mesma maneira de
viver: harmonia na convivência, participação e inclusão
num mundo e numa vida que estavam de.modo
permanente sob seus cuidados e responsabilidade.
Nada indica que a cultura matrística européia pré-
patriarcal tenha vivido com uma contradição interna,
como a que vivemos em nossa atual cultura patriarcal
européia. (...)
O sexo e o corpo eram aspectos naturais da vida, e
não fontes de vergonha ou obscenidade. E a
sexualidade deve ter sido vivida na interligação da
existência. Não primariamente como uma fonte de
procriação, mas sim como uma vertente de prazer,
sensualidade e ternura, na estética da harmonia de um
viver no qual a presença de tudo era legitimada por
meio de sua participação na totalidade. As relações
humanas não eram de controle ou dominação, e sim de
congruência e cooperação, não para realizar um grande
projeto cósmico, mas sim um viver interligado, no qual a
estética e a sensualidade eram a sua expressão normal.
Para esse modo de Vida, uma dor ocasional, um
sofrimento circunstancial, uma morte inesperada, um
desastre natural, eram rupturas da harmonia normal da
existência. Eram também chamadas de atenção diante
de uma distorção sistêmica, que surgia por causa de
uma falta de visão humana que punha em perigo toda a
existência.
Viver dessa maneira requer uma abertura emocional
para a legitimidade da multidimensionalidade da
existência que só pode ser proporcionada pela biologia
do amor. A vida matrística européia pré-patriarcal estava
centrada no amor, como a própria origem da
humanidade, e nela a agressão e a competição eram
fenômenos ocasionais, não modos cotidianos de vida.
Humberto Maturana. AMAR E BRINCAR
Fundamentos esquecidos do humano
São Paulo. Ed.Palas Athena, 2011, pp.42-49
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HÁ UM SABOR DE POESIA NESTA PEDAGOGIA
Fizemos muitas trajetórias
e estamos ainda em travessia.
Somos um grupo
de pesquisador@s aprendentes.
Uma rede a serviço
da educação transformadora.
Nossas armas são a música,
as histórias,
as danças circulares,
os jogos cooperativos,
as terapias comunitárias,
as vivências da cultura de paz.
Com saberes plurais,
com sabores e temperos diversos,
fazemos avançar as pedagogias
da indignação, da ternura, do direito,
do cuidado, da solidariedade.
Estamos presentes em
comunidades, escolas,
centros de juventude, instituições
educativas, com amplo repertório
de reflexão e vivências cuidadoras.
Nós podemos mais.
Vamos lá fazer o que será
(Gonzaguinha).
E venham
pedagogos e pedagogas da fraternura.
E se acheguem
arte-educadores e arte-educadoras.
Somos nós. Somos muit@s. Seremos sempre mais.
MENINOS - Xangai
Vou pro campo No campo tem flores
As flores tem mel Mas a noitinha
Estrelas no céu, no céu, no céu. . .
No céu da boca da onça é escuro
Não cometa não cometa Não cometa furo
Pimenta malagueta não é Pimentão tãotãotão. . .
Vou pro campo Acampar no mato
No mato tem pato Gato, carrapato
Canto de cachoeira
Dentro d'água Pedrinhas redondas
Quem não sabe nadar Não entre nessa onda
Que a cachoeira é funda E afunda menino
Não sou tanajura mas eu crio asas
Com os vagalumes eu quero voar, voar, voar. . .
O céu estrelado hoje é minha casa
Fica mais bonita Quando tem luar, luar, luar. . .
Quero acordar com os passarinhos
Cantar uma canção com o sabiá
Dizem que verrugas são estrelas
Que a gente conta Que a gente aponta
Antes de dormir, dormir, dormir. . .
Eu tenho contado Mas não tem nascido
Isso é estória de nariz comprido
Deixe de mentir, mentir, mentir. . .
Os sete anões pequeninos, sete corações de meninos
E a alma leve, leve, leve. . .
São folhas e flores ao vento
O sorriso e o sentimento da Branca de Neve, neve,
neve. . .
Não sou tanajura. . .
BENKE Milton Nascimento
Beija-flor me chamou: olha
Lua branca chegou na hora
O Beija-Mar me deu prova: Uma estrela bem nova
Na luminária da mata Força que vem e renova
Beija-Flor de amor me leva Como o vento levou a folha
Minha Mamãe soberana Minha Floresta de jóia
Tu que dás brilho na sombra Brilhas também lá na praia
Beija-Flor me mandou embora
Trabalhar e abrir os olhos
Estrela d'Água me molha Tudo que ama e chora
Some na curva do rio Tudo é dentro e fora
Minha Floresta de jóia
Tem a água tem a água tem aquela imensidão
tem sombra da Floresta tem a luz do coração